“Mário não sabia que tinha nascido poeta. Seus pais primeiro pensaram que ele fosse débil mental. Porque, por exemplo, se o menino visse uma formiga no canteiro do jardim, apaixonava-se por ela de modo obsessivo, quer dizer, enfiava a cara contra o chão para focalizar nitidamente aquele ser movente. E rastejava o dia inteiro atrás da formiga, por onde ela fosse, a fim de saber direito o que era aquilo, o que fazia, como vivia e, sobretudo, o que significava em relação à pessoa dele. Como os adultos, do alto de suas estaturas, não podiam ver a formiga sob a cabeça do menino, e como não conseguiam arrancá-lo daquela posição sem escândalo e violência, tudo levava a crer que se tratava de natureza ou vocação quadrúpede.
Mário custou muito a aprender a falar do jeito que as pessoas gostam que as crianças falem. Quero dizer que ele falava, emitia sons articulados muito parecidos com os das línguas estrangeiras que ainda não aprendemos. Essa comparação me parece boa porque, de fato, Mário tinha inventado uma linguagem própria e queria que os outros a aprendessem com o mesmo empenho com que queriam que ele aprendesse a deles.
Esses exemplos dão alguma ideia de como foi a infância de Mário, principalmente imaginando que formiga e falar são duas coisas menos interessantes e perturbadoras que se pode descobrir no jardim da gente, nas cidades da gente e nas gentes da gente.
Na adolescência, Mário já falava o português, embora com forte e carregado sotaque de sua própria língua. Submeteu-se à escola, e espantava mestres e colegas com seus conhecimentos de fenômenos e coisas da natureza. O maior problema era imitar o comportamento de outros meninos, reservando apenas para quando estivesse sozinho o seu jeito natural de ser que tanto incomodava e escandalizava as demais pessoas. Cansou de apanhar dos pais e de ser apalpado e revirado ao avesso pelos médicos, de ser humilhado pelos professores e pelos colegas. Assim, para evitar as bordoadas, os quartos escuros, as refeições sem sobremesa, as injeções e colheradas de óleo de fígado de bacalhau, Mário inventou um personagem que, quando representava bem, garantia-lhe o direito de ficar sozinho no lugar que escolhesse e sendo ele mesmo pelo tempo que quisesse ser.”
Continua..
Roberto Freire – Viva eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu!, p. 60-62